Por Diego Freire da Revista Pesquisa Fapesp
Uma floresta, por maior que seja, é “plantada” árvore a árvore. Por quem? Em grande parte, involuntariamente pelos animais que as habitam e espalham sementes para novos territórios ao se alimentar dos frutos ou fazer uso de outros recursos das árvores. Recentemente, porém, pesquisas interdisciplinares sobre a expansão das florestas de araucária reuniram evidências biológicas e arqueológicas de que o ser humano teve protagonismo na expansão da espécie no Sul do Brasil.
Há 2 mil anos, a espécie Araucaria angustifolia, símbolo do Sul brasileiro e conhecida como pinheiro-do-paraná, estava (como hoje) ameaçada de extinção. As mudanças climáticas da época confinaram a espécie a uma área bem restrita, da qual seria muito difícil sair não fosse pela ação humana. Hoje, as araucárias estão ameaçadas em consequência do desmatamento irrefreado. A conclusão é de pesquisadores das universidades Federal de Santa Catarina (UFSC), do estado de Santa Catarina (Udesc) e de São Paulo (USP).
Para refazer o caminho trilhado pela araucária desde seu confinamento até a expansão pela região Sul, o grupo do engenheiro florestal Miguel Busarello Lauterjung, do Núcleo de Pesquisas em Florestas Tropicais da UFSC, colheu amostras de 20 populações dessas árvores e utilizou a filogeografia – área do conhecimento que analisa as relações entre as variações genéticas e a geografia onde ocorrem – para traçar a rota da sua ancestralidade. “Marcas dos acontecimentos passados deixadas na genética da espécie evidenciam a expansão da espécie por uma força externa: a dispersão de suas sementes por animais. Como as araucárias se expandiram por um vasto território em um período curto de tempo, esse dispersor só poderia ser um animal de grande porte – no caso, o homem”, conta Lauterjung, sobre resultados publicados em 2018 na revista Tree Genetics & Genomes.
Em paralelo às análises genéticas, o grupo catarinense reuniu registros arqueológicos de rotas de migração indígena nas ocupações dos povos Jê do Sul, que abrangem os grupos étnicos Kaingaing e Xokleng. O arqueólogo Paulo DeBlasis, do Laboratório de Arqueologia Regional do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), coordenou pesquisas que também evidenciaram a associação entre a expansão da floresta e a das populações humanas. “O local a partir do qual a floresta se expandiu, entre 1.410 e 900 anos atrás, é exatamente onde as populações de língua Jê também se espalharam – ou seja, a expansão das araucárias acompanhou a humana”, conta. Segundo o arqueólogo, a araucária sempre foi uma espécie de muito interesse humano, não só para a alimentação –produz o pinhão –, mas também pela exploração madeireira. No século XX a árvore passou a ser ameaçada de extinção.
Os registros arqueológicos reunidos por Blasis indicam que a expansão da floresta coincide com um período de mudanças demográficas e culturais na região. Os pesquisadores do MAE-USP desenvolveram e testaram um modelo de distribuição de ecossistemas naturais que analisa em conjunto a história da vegetação, dados paleoclimáticos e registros arqueológicos para distinguir os impactos humanos daqueles provocados por temperatura e precipitação na distribuição e expansão de florestas de araucária durante o Holoceno, que começou no fim da última era glacial – os últimos 11.500 mil anos da história da Terra.
Os dados, publicados em 2018 na Scientific Reports, confirmam que, apesar das flutuações climáticas, sem pessoas a vegetação era estável e as florestas espacialmente limitadas a encostas sulcadas. Em contraste, o uso da floresta nos últimos 1.400 anos expandiu essa vegetação para além de suas fronteiras geográficas naturais em áreas de ocupação pré-colombiana densa, sugerindo que as modificações na paisagem estavam ligadas às mudanças demográficas cujos efeitos ainda são visíveis hoje. “Antes da presença humana da tradição linguística Jê do Sul na região, são fracos os sinais de expansão das araucárias, o que evidencia a relevância do auxílio humano para a dispersão da espécie”, diz Lauterjung.
Florestas refugiadas
Durante o Último Máximo Glacial, há aproximadamente 21 mil anos, o Sul do Brasil tinha condições climáticas mais secas e frias e a vegetação era quase totalmente de campo, onde predominam gramíneas e arbustos (ver Pesquisa FAPESP nº 239). Isso teria empurrado as populações de araucária para regiões com condições climáticas menos restritivas, que serviriam de refúgio para a sobrevivência da espécie. De acordo com estudos de grãos de pólen fossilizados, essas regiões seriam os vales próximos às áreas de planaltos no leste da região Sul do Brasil, próximo ao atual município de Campo Belo do Sul, em Santa Catarina, de onde saiu o material genético para a expansão da araucária.
Segundo a pesquisa da UFSC, tudo começou – ou recomeçou – ali. Do ponto de vista ecológico, uma área de refúgio é a porção territorial para a qual espécies recuam devido a mudanças adversas, principalmente climáticas, que dificultam a sobrevivência no hábitat natural. Lá elas persistem e, eventualmente, dali voltam a se expandir.
Esse refúgio para a araucária foi inicialmente proposto pelo biólogo Michel Barros como parte da tese de doutorado defendida em 2014 no Departamento de Genética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Nós realizamos análises de diversidade taxonômica e molecular, além de modelagem de nicho ecológico para espécies desse bioma, e mostramos uma área de maior adaptabilidade para Araucaria angustifolia no passado, reforçando esse território como refúgio, principalmente a formação Serra Geral”, conta Barros.
Os estudos atuais corroboram sua hipótese de que a araucária teria permanecido restrita à região até cerca de 4 mil anos atrás, quando as condições climáticas se tornaram mais úmidas, quentes e favoráveis ao seu desenvolvimento – mas não o suficiente. Faltava o empurrãozinho da ação antrópica. A melhora do clima não teve grande efeito sobre a expansão da araucária a partir das áreas de refúgio, explica Lauterjung. “A espécie só teria começado a se expandir com grande intensidade cerca de 2 mil anos atrás em todas as regiões estudadas”, afirma ele, que considera curto o tempo dessa época até hoje para uma distribuição tão ampla quanto a atingida pela araucária. “O fator decisivo seria a forte dependência de seu uso pelo homem, especialmente na alimentação com o consumo do pinhão, ou para atrair fauna para caça.”
A pesquisa da UFSC contou, ainda, com testes em modelos computacionais para avaliar se Araucaria angustifolia conseguiria se expandir em proporção semelhante no mesmo período por conta própria, corroborando que a espécie necessitou de auxílio externo para a sua expansão. “Temos de aprender com isso”, defende Lauterjung. O pesquisador lembra que as medidas para a conservação da araucária que restringem o uso humano “desconsideram possíveis interações benéficas que podem favorecer a conservação de um recurso por meio do seu uso”. Para Lauterjung, a interação do ser humano com a araucária pode ter benefícios quando contraria a redução que aconteceu no passado, com o corte de florestas nativas para madeira. “Nosso estudo demonstra que o uso de uma espécie pode ser benéfico para todas as partes. Entretanto, esse uso precisa agir no sentido de manter e aumentar a população existente.”
Fonte: CicloVivo